O século XIX foi rico em mudanças sociais, econômicas e políticas no Brasil e no mundo. Ao longo
desses cem anos, instituições e normas sociais herdeiras do Antigo Regime se depararam com a
ascensão de valores característicos da Idade Moderna, como individualidade, liberdade e cida-
dania. O presente artigo explora, a partir do caso dos sapatos comercializados e utilizados no
Rio de Janeiro, as diferentes negociações e conflitos entre os valores tradicionais e modernos,
incluindo a posição de “colônia” e uma concepção local de “civilização”. O período abarcado
pelo trabalho consiste majoritariamente na chegada da Corte portuguesa, em 1808, e no final do
século. Utilizaram-se dados secundários como principal fonte de análise. Conclui-se que os calça-
dos ilustram e narram perspectivas sobre questões importantes da época, como posição social e
hierarquia, distinção entre “rotina” e “ocasião”, estrutura comercial e de trabalho (no caso dos
sapateiros). Há, ainda, indícios de seu uso numa trama cultural própria ao Rio de Janeiro, servindo
de mediador entre espaços públicos e privados, além de colocar luz à tensão existente em uma
sociedade que procura se distinguir sob moldes civilizatórios fundados sobretudo em uma pers-
pectiva europeia, ao mesmo tempo em que se depara com as marcas da escravidão.