O texto investiga as formas de disciplinamento da homossexualidade e da raça no espaço urbano do Rio de Janeiro a partir da reflexão sobre o filme “Madame Satã” (2002), que retrata a vida de João Francisco dos Santos. Ele foi um personagem real e mítico da malandragem carioca, representou o alvo preferencial das práticas repressivas e de higienização desse espaço onde conviviam os excluídos da cidadania (os negros marginalizados pela “abolição sem inclusão racial”, os segregados espacialmente pelas reformas urbanas do início do século e os desviantes da heteronormatividade e perseguidos pelo moralismo conservador). Busca-se desvendar o modo como práticas legislativas, institucionais e ilegais, além do discurso científico, vincularam raça e sexualidade desviante. Defende-se que raça e punição, desde a formação do colonialismo, compõem um dispositivo, nos termos de Michel Foucault, implicando num intercâmbio constitutivo de sentidos e práticas sociais. Logo, o sistema penal brasileiro não seria apenas eventualmente discriminatório, pois o racismo estruturaria as relações de poder que especificam as formas de punição e a punição compõe a estrutura da raça como construção social em seu sentido negativo. Para além da perspectiva essencializante, propõe-se que o personagem exemplifica o desencontro entre a complexidade de papéis sociais e as formas dominantes de demarcação da masculinidade.
The paper investigates the ways of disciplining of homosexuality and race in the urban area of Rio de Janeiro from the reflection on the film "Madame Satã" (2002). It shows the life of João Francisco dos Santos, real and mythical character of Rio’s trickster culture, who represented the primary target of repressive practices and the “cleansing” of urban spaces, where the ones marginalized by the abolition without racial inclusion, the populations especially excluded by urban reforms of the beginning of the century and the deviants from the heteronormativity lived together. We want to show how legislative, institutional and even illegal practices, alongside with the scientific discourse, linked race and deviant sexuality. It is argued that race and punishment, since the formation of colonialism, compose a "device", in the terms of Michel Foucault, implying an exchange constitutive of meanings and social practices. Therefore, the criminal justice system would not be just accidentally discriminatory. As racism is fundamental to the power relations that specify the forms of punishment, the structure of punishment itself composes the race as a social construct in its negative sense. Finally, beyond the essentializing perspective, it is proposed that the character exemplifies the disagreement between the complexity of social roles and the dominant forms of demarcation of masculinity.