Considera-se o cão o melhor amigo do homem. Aplicado aos caninos socráticos que sorviam a água na concha das mãos, o provérbio cai como uma luva. CÃnicos, ou cães, não só por recordar constantemente aos próximos a sua animalidade, ou perambular por um recinto especÃfico da antiga Atenas; mas também por cobrar de cada um aquela árdua excelência da qual abrimos mão com tanta facilidade. Assim como fazem os melhores amigos. Em epigrama sobre AntÃstenes – ouvinte de Sócrates e a quem Diógenes de SÃnope não raro escutou. Diógenes Laércio associa o sÃmile do cão à mordacidade tÃpica dessa filosofia: “Na vida, AntÃstenes, foste um cão autêntico, preparado pela natureza para morder o coração humano com palavras, e não com os dentesâ€. Que palavras? As do tipo cortantes e percussivas. A filosofia cÃnica é indissociável de sua poética. Trocadilhos no registro da semântica e reiterações no registro sintático. Importa petrificar o significante a fim de frear, literalmente, a aparente obviedade do curso do mundo. Palavra com sangue e tutano – matérias presentes nos ossos, quitute favorito de cães. Também os dentes, ossos cortantes e percussivos, contêm esses elementos. Palavras com matéria. Por quê? Na especulação filosófica clássica, as palavras são vetores do sentido. Poesia acontece, outro modo, quando se mira a própria palavra. No trocadilho, suspende-se o funcionamento da lÃngua em seu aspecto literal e o poético vem à luz. Dupla suspensão que produz deleite (o riso) ao pôr em evidência uma incongruência, a qual nos confronta, no mesmo golpe, a um sentido inesperado, contudo admissÃvel – momento em que o riso se converte em dúvida. O sabor acerbo da ironia.