O desafio de diagnosticar a infecção tuberculosa na criança

Ano: 2014 | Volume: 32 | Número: 1

Autores: R. C. Succi

Resumo Português:

Embora tenhamos feito progressos rumo aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio( 1 ), pactuados em 2010 pela Organização Mundial da Saúde - "reduzir à metade a incidência e a mortalidade por tuberculose até 2015, comparados aos valores de 1990" -, o Brasil ainda ocupa o 17º lugar entre os países com maior carga da doença no mundo( 2 ). Tratar efetiva e precocemente todos os casos de tuberculose é a principal medida para salvar cerca de 1,5 milhão de vidas a cada ano( 2 ). Porém, na maioria das vezes, quando o diagnóstico e o tratamento são feitos, muitas pessoas (contatos) já foram infectadas, grande parte delas crianças que, além de controlarem de forma menos eficaz a replicação do M. tuberculosis, progridem mais frequente e rapidamente para formas pulmonares e extrapulmonares da doença( 3 - 5 ).

A identificação e o tratamento da infecção tuberculosa latente reduz o risco de progressão para a doença ativa, particularmente nos grupos de alto risco, tais como crianças com idade abaixo de cinco anos, pacientes infectados pelo HIV e em uso de terapia imunossupressora( 6 , 7 ). Entretanto, o diagnóstico precoce e preciso da infecção tuberculosa na criança é ainda um grande desafio. Além do teste tuberculínico (utilizado há mais de 100 anos), na última década desenvolveram-se testes utilizando amostras de sangue periférico que avaliam a liberação de interferon gama (IFN-γ) pelas células T do hospedeiro infectado pelo M. tuberculosis ( 8 ). Esses testes, denominados Interferon Gama Release Assay (IGRA), apresentam vantagens em relação ao teste tuberculínico: os resultados podem ser obtidos em um ou dois dias, não necessitam de visita de retorno para a leitura da reação cutânea e, se repetidos, não apresentam efeito booster. Os três antígenos utilizados para os testes IGRA (ESAT-6, CFP-10 e TB7.7) não estão contidos na vacina BCG e na maioria das outras micobactérias, enquanto a tuberculina (PPD) contém mais de 200 antígenos, o que reduz sua especificidade. Dois kits comerciais estão disponíveis: o QuantiFERON-TB Gold in Tube, que avalia os níveis de IFN-γ produzidos após o estímulo com os antígenos, e o T_Spot. TB, o qual quantifica as células mononucleares produtoras de IFN-γ após estimulação in vitro.

Nos últimos três anos, três revisões sistemáticas e meta-análises foram publicadas( 9 - 11 ), referentes aos testes IGRA na população pediátrica, revelando especificidade muito alta (95 a 100%), excedendo a do Teste Tuberculínico (TT), e sensibilidade mais baixa (80 a 90%), dependendo da idade dos sujeitos e de sua condição de imunocompetência( 8 - 11 ). Isso sugere que o TT e os testes IGRA têm acurácia similar na detecção de infecção ou doença em crianças, mas a interpretação dos resultados é difícil pela ausência de um marcador definitivo dessas condições na criança.

O estudo de Vallada et al ( 12 ), publicado nesta edição da re-vista, avaliou a acurácia dos testes IGRA (QuantiFERON-TB Gold in Tube) no diagnóstico da tuberculose em crianças e revelou valor preditivo positivo de 81,8% (IC95% 46,3-97,4), sensibilidade de 81,8% (IC95% 48,2-97,2) e especificidade de 98,8% (IC95% 96-99,8). Entretanto, a pequena amostra avaliada de crianças com tuberculose (latente ou doença ativa) diminui o poder do estudo em suas conclusões definitivas. É ponto forte da pesquisa, todavia, a baixa idade dos participantes (sete das 11 crianças tinham idade inferior a cinco anos e cinco apresentaram IGRA positivo). Apenas duas crianças definidas pelos critérios do estudo como infectadas apresentaram IGRA negativo, ambas com doença ativa e idade inferior a três anos. Mesmo considerando que as 11 crianças tenham recebido vacina BCG ao nascer, o teste apresentou boa relação com o TT, que foi ≥10mm nas nove crianças que o realizaram.

Implicações importantes do estudo são: a boa relação com o teste tuberculínico, mesmo em crianças de baixa idade, e o fato de que, apesar de seu alto valor preditivo negativo, um teste negativo não foi capaz de afastar o diagnóstico de tuberculose (infecção ou doença) em crianças. Se buscarmos maior especificidade em crianças que receberam a vacina BCG, os testes IGRA são melhores do que o TT, mas se desejamos maior sensibilidade, ambos podem ser realizados. Em crianças imunossuprimidas, incluindo as infectadas pelo vírus HIV, deve-se preferir a associação dos dois testes.

Os testes IGRA ainda não foram validados no Brasil para uso de rotina no diagnóstico da tuberculose. A possibilidade de afastar infecção tuberculosa em crianças vacinadas com BCG e reações tuberculínicas positivas faz dos testes IGRA importantes instrumentos para diagnosticar a infecção tuberculosa em nosso meio. No entanto, embora mais específicos do que o TT, esses testes não são capazes de distinguir entre tuberculose infecção e doença, o que ainda requer critérios clínicos e radiológicos para sua definição.

Resumo Inglês:

While we have made some progress towards the Millennium Development Goals( 1 ), which were agreed in 2010 by the World Health Organization - "to reduce by half the incidence and mortality of Tuberculosis by 2015, compared to values of 1990" -, Brazil still ranks 17th among countries with the highest TB burden in the world( 2 ). The early and effective treatment of all cases of tuberculosis is the primary measure to save around 1.5 million lives each year( 2 ). However, often, when diagnosis and treatment are being performed, many people (contacts) have already been infected, most of them children who, besides controlling less effectively the replication of the M. tuberculosis, progress more rapidly and frequently to pulmonary and extrapulmonary forms of the disease( 3 - 5 ).

The identification and treatment of latent tuberculosis infection reduce the risk of progression to the active disease, particularly in high-risk groups, such as children under 5 years old, infected with HIV and on immunosuppressive therapy( 6 , 7 ). However, an early and accurate diagnosis of TB infection in children is still a great challenge. In addition to the tuberculin skin test - TST (used for over 100 years), in the last decade researchers have developed tests using peripheral blood samples that measure the release of interferon-gamma (IFN-γ) from T host cells infected by M. tuberculosis ( 8 ). These tests, called Interferon-Gamma Release Assays (IGRAs), present advantages in relation to the tuberculin test: the results may be obtained in one or two days, do not require return visits for reading the skin reaction and, if repeated, do not present a booster effect. The three antigens used for the IGRA tests (ESAT-6, CFP-10, and TB7.7) are not contained in BCG vaccine and in most other mycobacteria, while tuberculin (PPD) contains more than 200 antigens, which reduces its specificity. Two commercial kits are available: QuantiFERON-TB Gold in Tube, which assesses the levels of IFN-γ produced after antigen stimulation, and the T-Spot.TB test, which quantifies the mononuclear cells producing IFN-γ after in vitro stimulation.

Over the past 3 years, three systematic reviews and meta-analyzes have been published( 9 - 11 ), concerning the IGRA tests in the pediatric population, revealing a very high specificity (95-100%) - exceeding that of the Tuberculin Test (TST) -, and a lower sensitivity (80-90%), depending on the age of the subjects and their condition of imunocompetence (8-11). This suggests that the TST and the IGRAs have similar accuracy in detecting infection or disease in children, but the interpretation of results is difficult due to the absence of a definitive marker of these conditions in children.

The study by Vallada et al ( 12 ), published in this issue of the journal, assessed the accuracy of one Igra tests (QuantiFERON-TB Gold in Tube) in the diagnosis of tuberculosis in children and showed a positive predictive value of 81.8% (95%CI 46.3-97.4), sensitivity of 81.8% (95%CI 48.2-97.2), and specificity of 98.8% (95%CI 96-99.8). However, the small sample of children assessed with tuberculosis (latent or active disease) diminishes the power of the study in its definitive findings. A strong point of the research, however, is the low age of participants (seven of the 11 children were younger than 5 years and five presented a positive test). Only two children defined by the study criteria as infected presented a negative QuantiFERON-TB Gold in Tube test, both with active disease and under 3 years of age. Even considering that the 11 children have received BCG at birth, the test presented a good relationship with the TST, which was ≥10mm in the nine children who performed it.

Important implications of the study are: the good relationship with the tuberculin skin test, even in young children, and the fact that, despite its high negative predictive value, a negative test cannot rule out the diagnosis of tuberculosis (infection or disease) in children. If we seek greater specificity in children who received the BCG vaccine, the IGRA tests are better than the TST, but if we want greater sensitivity, both tests can be performed. In immunocompromised children, including those affected with HIV, the combination of both tests should be preferred.

The Interferon-Gamma Release Assays have not been validated as a routine diagnostic procedure for tuberculosis in Brazil. The possibility of excluding tuberculosis infection in children vaccinated with BCG, and the positive tuberculin reactions make the IGRAs important instruments to diagnose tuberculosis infection in our country. However, although more specific than the TST, these tests are not capable to differentiate latent tuberculosis infection from tuberculosis disease, which still requires clinical and radiological criteria for its definition.