"MAIS UM ANO, MAIS UMA VEZ..."
Revista Espaço
"MAIS UM ANO, MAIS UMA VEZ..."
Autor Correspondente: Liona Paulus | [email protected]
Palavras-chave: Lingua de sinais. Comunidade surda. Brasil.
Resumos Cadastrados
Resumo Português:
Meu nome é Liona Paulus e sou da Alemanha. Em 2004, vim a Porto Alegre como voluntária surda para fazer voluntariado em uma escola para surdos durante um ano e, ao mesmo tempo, conhecer o Brasil. Tão logo cheguei neste país, durante minha primeira longa estadia, percebi o enorme potencial da Comunidade Surda Brasileira e isso me fascinou tanto que sempre retorno a este lugar. Observei, e ainda observo, constantes e positivas mudanças (sociopolíticas). Farei uma descrição destas mudanças significativas, relacionando-as de forma cronológica (não exata, mas aproximada), sob minha perspectiva como uma estrangeira e pessoa próxima da Comunidade Surda Brasileira. Eu tinha terminado o Ensino Médio e estava me preparando para meu ano de voluntariado no Brasil. Essa preparação incluía muitas leituras de obras sobre essa terra, o maior país da América do Sul, pesquisa em vários sites e aquisição de guias de viagem. No entanto, não encontrei quase nada sobre a Língua de Sinais e a Comunidade Surda no Brasil. Isto pode ser devido ao fato de que eu não dominava a Língua Portuguesa naquela época e, portanto, não conseguia encontrar nenhuma fonte, já que a maioria das informações eram nesse idioma. Por este motivo, eu tinha a crença de que o Brasil era um país muito pobre, e que, por isso, talvez não houvesse nenhum ou pouco esforço para o fortalecimento da Comunidade Surda Brasileira, bem como não havia uma Língua de Sinais, ou até mesmo existiria uma Língua de Sinais rudimentar. Resumindo, sem domínio da língua do país e com a ótica eurocentrista de uma cidadã de um país desenvolvido, julguei o Brasil como um país “em desenvolvimento”, não somente em termos socioeconômicos, mas também educacionais e políticos dentro do contexto da Educação Surda.
Essa teoria se mostrou totalmente errada nos meus primeiros meses de estadia no país; estava completamente equivocada e tive que desconstruir rapidamente meus conceitos. A Língua Brasileira de Sinais, a Libras, era largamente utilizada pela Comunidade Surda Brasileira, em todos os ambientes sociais e educacionais
— como, por exemplo, nas escolas de surdos, principalmente pelos professores surdos − e isso se estendia na comunidade escolar: os funcionários, desde o diretor até a administração escolar, tinham um conhecimento relativamente bom da Libras. Minhas experiências na Alemanha não se aproximavam a essa realidade nas escolas surdas brasileiras: nos meus anos escolares, eu nunca tinha tido professores surdos; as aulas eram exclusivamente em língua oral; a administração e os demais funcionários não falavam a Língua de Sinais Alemã. Outro contraste nos ambientes escolares: pouquíssimas crianças da escola de surdos Frei Pacífico (localizada em Porto Alegre) usavam aparelhos auditivos e, ainda mais raro, um implante coclear (IC), e essa escola oferecia cursos de Libras para os pais. Na Alemanha era o oposto: quase todos os alunos surdos usavam aparelhos auditivos, vários tinham um IC e a escola não oferecia nenhum curso de Língua de Sinais para os pais dos alunos surdos. Essa diferença na posição da escola quanto à língua de sinais me impressionou: no Brasil havia uma valorização da Libras dentro e fora da escola e isso era perceptível na fluência das crianças surdas, de todas as idades, que se mostravam à vontade e felizes no espaço linguístico que ali havia. Na Alemanha, a maioria dos surdos de faixas etárias diferentes ficavam alocados em prédios diferentes, o que dificultava a aquisição da Língua de Sinais, pois não havia contato de crianças surdas com jovens surdos. Este desenvolvimento positivo das crianças surdas brasileiras se deve ao fato de que elas estão ligadas umas às outras, possuem um espaço de identificação e fortalecimento da Identidade Surda, resultado de uma rede bem informada e estruturada pela Comunidade Surda Brasileira, composta pelas associações, e que promovia eventos (públicos) como o Setembro Azul e vários seminários como o 1° Encontro dos Líderes Surdos, entre outros.
Enquanto trabalhava voluntariamente na escola de surdos Frei Pacífico, constituí um círculo de amigos surdos que eram professores na mesma escola e ampliei este círculo com outros surdos da Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul (SSRS)1. Notei que muitos de meus amigos e conhecidos surdos já estavam estudando na universidade, nas áreas de Educação, Esportes, Geografia, Informática e História. Eu, por outro lado, tinha poucos amigos surdos alemães universitários; no entanto, a maioria dos meus conterrâneos surdos preferiam não estudar na universidade, pois sempre enfrentávamos burocracia devido ao desconhecimento das empresas filiadas à universidade de como fornecer os tradutores intérpretes de DGS (Língua de Sinais Alemã) ou até mesmo resistência das universidades em contratar intérpretes. No Brasil, os intérpretes eram diretamente contratados pelas universidades sempre que havia um surdo matriculado no curso. Fiquei admirada que a presença de profissionais intérpretes atuando nos diversos espaços educacionais durante meus estudos no Brasil já estivesse bem regulamentada. Percebi que o ingresso no espaço acadêmico impactava de tal forma meus amigos surdos que eu percebia mudanças na postura: um ser mais crítico, mais sábio, mais empoderador, um perfil mais acadêmico. Esse sistema de acessibilidade ao ambiente universitário me deu esperança de estudar e me formar na universidade do meu país, pois minhas dúvidas da capacidade de ingressar, permanecer e formar em um curso superior sumiram após eu ter esses Modelos Surdos do Brasil. Se o Brasil consegue construir uma política que permita que os surdos ingressem em ambientes acadêmicos, certamente a Alemanha poderia fazer o mesmo.
O fato de crianças, adolescentes e jovens adultos surdos terem acesso à educação através da Língua de Sinais é uma característica que permite ao Brasil se destacar na área educacional. A Alemanha, apesar de ser um país rico, peca no quesito acessibilidade educacional e na promoção de Espaços Linguísticos Surdos. Há também o inegável fato de que, ao dominarem uma língua e cultura comuns desde muito cedo, a Comunidade Surda Brasileira é muito conectada, de tal forma que isso permite a construção e manutenção de uma rede extensa e unida, a despeito do tamanho do Brasil. Na Alemanha, muitas crianças surdas sofrem privação linguística e cultural ao não terem acesso à Língua de Sinais desde a tenra idade. Isso prejudica a Comunidade Surda Alemã, pois enfraquece as políticas linguísticas que permitem que os surdos se identifiquem como uma minoria linguística e cultural e se unam em torno de uma Identidade, Língua e Cultura próprias. O Brasil é um país que se destaca em comparação à Alemanha no que diz respeito ao fomento da Cultura e Língua de Sinais.
Em 2006, o curso de Letras-Libras na modalidade à distância foi inaugurado pioneiramente pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com encontros presenciais quinzenais. Fiquei sabendo sobre as decisões de muitos de meus amigos brasileiros de estudar Letras-Libras e também outras áreas, como Educação, Esporte ou Ciência da Computação. Muitos Líderes surdos se inscreveram no vestibular para ingressar neste curso de Letras. Um detalhe que me surpreendeu positivamente foi o fato de que as disciplinas do curso eram ministradas em Libras, além do material didático ser, também, em Libras: a Língua de Sinais era, neste espaço de ensino superior, a Língua de Instrução. Havia uma estrutura tecnológica de ponta que permitia as transmissões das aulas ao vivo, para 15 (em 2006) e 18 (em 2008) polos distribuídos nos principais estados brasileiros. A Alemanha não possuía, nem de longe, uma estrutura de ensino semelhante. Há a Universidade Gallaudet, mas a mesma não contava, na época, com um curso na modalidade à distância. Em 2008, retornei ao Brasil para uma visita aos meus amigos surdos e pude sentir as mudanças decorrentes da abertura do curso de Letras-Libras: os surdos estavam mais política e linguisticamente capacitados, mais conscientes de seus direitos linguísticos, além de o vocabulário ter se expandido consideravelmente. Isto se deu porque surgiram muitos termos e conceitos novos que demandaram as criações de sinais terminológicos. Com este conhecimento, os acadêmicos surdos e os surdos direta e indiretamente por eles influenciados foram se empoderando e aprimorando sua capacidade discursiva política e argumentativa, promovendo um grande impacto no engajamento dos surdos em vários segmentos sociais.
Em 2006, iniciei estudos na Alemanha e essa experiência me permitiu tecer algumas comparações entre o sistema educacional superior brasileiro e alemão. Por exemplo, eu estudava com a presença de um intérprete em sala de aula e em reuniões acadêmicas; a comunicação entre os professores e colegas nunca foi direta, sempre era mediada pelo profissional tradutor/intérprete e eu era a única estudante surda na minha universidade. Isso me deixava muito insegura, pois a universidade era um ambiente totalmente novo para mim, além do fato de não contar com um colega com quem compartilhar ideias. Já no curso de Letras- Libras, a maioria dos alunos era surda e fluente na Língua de Sinais; havia uma troca direta, rica, proveitosa e empoderadora entre os alunos e entre os alunos e professores. Portanto, havia um Espaço Surdo permanente que lhes dava um lugar para florescerem. Tanto que muitos se formaram na graduação e se sentiram motivados a entrar na pós-graduação, em nível mestrado e doutorado, oferecido na UFSC. Isto me impressionou novamente, pois a esta altura eu já tinha chegado ao ponto de querer abandonar os estudos. Era muito frustrante e cansativo, também com os intérpretes, pois minha área temática (educação especial) não havia terminologia em Língua de Sinais, exigindo esforço para criar sinais específicos conforme os semestres iam passando, além de não ter profissionais na área com os quais eu poderia intercambiar ideias. E ainda havia o desgaste de ter que me defender constantemente da discriminação que eu frequentemente sofria. Tudo isso me fazia querer desistir e me desanimava de ter esperança para fazer um mestrado. Realmente, isso estava fora de questão para mim. Na minha visita ao Brasil eu compartilhei com meus amigos essa minha vontade de desistir do curso, mas todos eles me encorajaram a não fazê-lo, porque o aprendizado e a pesquisa eram bastante promissores e poderiam abrir portas para meu futuro profissional. Pude perceber que os estudos motivavam meus amigos a permanecerem no espaço acadêmico sempre aprimorando seus conhecimentos e esse entusiasmo me contagiou, de forma que decidi continuar na universidade, mas trocando de curso (Estudos de Mídia, Letras-Português e História da Arte).
Quando eu olho para trás, vejo que foi uma boa decisão, e isso graças aos meus amigos brasileiros e à sua imersão no espaço acadêmico politicamente desenvolvido. Neste período, os principais Líderes Surdos iniciavam sua pós- graduação, em nível de mestrado, e estavam em busca do doutorado, disparando o número de surdos mestres e doutores. Na Alemanha, não há o mesmo crescimento de ingresso de surdos no espaço científico-acadêmico como ocorreu no Brasil.
Durante este período, viajei ao Brasil duas vezes, com cerca de dois anos de diferença, para Fortaleza e Goiânia, para dar palestras no ENELL, o Encontro Nacional de Estudantes de Letras-Libras. Esse encontro teve a participação maciça de estudantes e de outros profissionais surdos relacionados à área e constituiu um Espaço Surdo intersetorial de médio prazo, ou seja, um espaço para futuros acadêmicos, professores surdos e estudantes universitários surdos. Nesse espaço pude observar como foram estabelecidas as primeiras redes profissionais e como foram discutidas as primeiras questões profissionais, tais como lidar com publicações em linguagem escrita ou em Libras, ou como criar uma rede de cooperação com colegas ouvintes e surdos na universidade. Assim, os primeiros marcos da profissionalização, principalmente o perfil de trabalho do acadêmico surdo e/ou do professor da Libras nas universidades, foram estabelecidos neste lugar e neste momento.
Durante este tempo, o número de doutorandos e doutores surdos continuou a aumentar, formando a primeira “geração” de doutores surdos. Também teve o marco do aumento expressivo de surdos egressos do Letras-Libras entrando no serviço público como professores universitários, por meio de concursos, em grandes cidades como: Porto Alegre(RS), Santa Maria(RS), Florianópolis(SC), Recife(PE), Fortaleza(CE), Goiânia(GO), Uberlândia(MG), Rio de Janeiro(RJ), entre outras, e com a estabilidade provida por um cargo público como professor de Libras seu padrão de vida estava mudando muito positivamente, permitindo- lhes mais privilégios e oportunidades. Esses professores de Libras foram lotados nos primeiros campus onde havia o curso de Letras-Libras. Esta rápida ascensão, de graduação para pós-graduação, com investidura de cargo público e criação de campus com cursos de Letras -Libras é um feito político admirável, resultado de uma engenhosa política linguística no Brasil que é referência internacional: os surdos e seus direitos linguísticos estão em destaque, no centro. Em muitos países, inclusive na Alemanha, o caminho que se toma é o inverso: primeiro reduzem- se as barreiras que os surdos têm na acessibilidade aos espaços educacionais acadêmicos, por meio da formação de intérpretes de Língua de Sinais. Não há visibilidade dessa língua, pois não se prioriza a formação e o desenvolvimento de uma nova profissão: a do professor de Língua de Sinais. Essa formação permite a construção e a solidificação dos direitos linguísticos dos surdos, promove o status social e legal do surdo em seu país. Ou seja, esse caminho inverso mantém as pessoas surdas ainda sem acessibilidade. Um exemplo: na Alemanha existem oito universidades que formam intérpretes para DGS e alemão, mas há uma grande carência de professores universitários capacitados no ensino da DGS e Estudos Surdos. Obviamente, sem o ensino adequado de DGS e Estudos Surdos, a qualidade da formação acadêmica de intérpretes fica prejudicada. Não há um curso equivalente ao de Letras-Libras na Alemanha, além do ingresso dos surdos alemães no espaço universitário não ser acessível: não há provas na sua Língua de Sinais e é exigido domínio de línguas estrangeiras que quase não são ensinadas nas escolas de surdos.
Podemos ver, ao compararmos os dois caminhos tomados (pelo Brasil e pela Alemanha), o quão importante é a implementação político-linguística, em um primeiro momento, de uma Língua de Sinais, pois essa política guiará a promoção ou não da acessibilidade e da participação social do surdo na comunidade.
Em 2012, concluí meu mestrado (2012) e comecei a trabalhar como professora universitária em um programa de graduação para interpretação em DGS e Alemão. No entanto, eu era a única professora surda em toda a universidade. Em contato constante com meus amigos e colegas brasileiros, sempre fiquei impressionada com a quantidade expressiva de professores surdos, intérpretes e com a visibilidade que a Libras tinha nos espaços institucionais universitários. Ao mesmo tempo que havia aumento de professores surdos, havia o crescimento do número de doutores e doutorandos surdos brasileiros, o que me motivou a fazer meu doutorado, na área de linguística, comparando a DGS e a Libras. Esse tema me interessou muito, pois eu tinha a fluência e dominava os diversos campos de conhecimento que esse tema exigia, além dos recursos e dos contatos. Para coletar os dados do meu projeto de tese, fui à UFSC, em Florianópolis, e fiquei um semestre, obtendo esses dados e participando de alguns seminários que eram em Libras, ou tinham a interpretação para a Libras.2
Isso foi em 2015, quando também pude notar a disseminação que a Libras tinha nos mais diferentes espaços públicos e privados, como em um aeroporto internacional brasileiro, com avatares e atendentes razoavelmente fluentes em Libras, capazes de realizar um atendimento claro e eficiente. Também observei os bancos, que ofereciam tradução dos textos em Língua Portuguesa para a Libras em seus caixas eletrônicos. Em restaurantes havia garçons ou gerentes sensíveis à diferença de comunicação que criavam estratégias como o uso de alfabeto manual, ou, pacientemente, caneta e papel, por meio da Língua Portuguesa escrita.
A introdução da Libras nas universidades e as crescentes pesquisas em Libras, a formação de professores e intérpretes e a oferta da Libras como disciplina optativa em muitos cursos permitiram que a Libras tivesse uma boa visibilidade no Brasil. Outro aspecto dessa política de acessibilidade e inclusão é o fato de que artigos científicos, teses e dissertações podem ser gravados e publicados em Libras. Isto promove e fomenta o desenvolvimento de vários gêneros textuais e terminologias nesta língua. Isso é motivador e excitante. É uma honra e um privilégio para mim, como linguista, acompanhar e observar esse processo (assim como todos os outros de médio e longo alcance que relato neste artigo).
Neste sentido, o Brasil está realmente se tornando uma sociedade mais inclusiva, mas em muitos outros países, incluindo a Alemanha, isto está acontecendo em um ritmo mais lento.
Para a etapa final da minha tese, retornei novamente ao Brasil por três meses, em 2018, para ter acesso mais direto a estudos na Língua Portuguesa e intercambiar ideias com colegas na área da Libras. Durante este tempo, iniciou- se a campanha eleitoral presidencial e essa política foi incluída nas pautas de conversas dentro da Comunidade Surda, porém esses debates começaram a ser travados de forma muito agressiva, gerando ataques uns aos outros dentro da comunidade. Esta agressividade me surpreendeu muito e me deixou triste. Por um lado, foi muito positivo ver que os surdos agora tinham um envolvimento mais ativo no processo político, o que é um sinal claro de uma maior participação social dos surdos brasileiros, especialmente de muitos acadêmicos surdos. O lado negativo foi o aspecto emocional das discussões dentro da Comunidade Surda, e isto provavelmente se deve ao fato de ser uma comunidade minoritária e pequena, aglomerando pessoas com diferentes níveis de experiências e informações, deixando-a mais vulnerável, pois ela se sustenta sob uma rede de identificação e irmandade. Após as eleições de outubro de 2018, as coisas se acalmaram novamente e o foco se voltou para as questões em comum: a política de status da Libras e os direitos linguísticos dos surdos no Brasil.
Depois veio a pandemia do coronavírus, em 2019, que modificou significativamente a luta e a vida de todos os envolvidos. Não pude viajar para o Brasil por um longo período e tive que vivenciar tudo de longe através das mídias sociais e videochamadas com meus amigos e colegas. O entusiasmo pela tecnologia e a experimentação de novos formatos, como textos em vídeo em Libras (para artigos ou divulgações), já estavam no sangue dos brasileiros e isso se tornou muito evidente logo após a pandemia: na adaptação ao ensino remoto, muitos campi universitários, particulares e públicos puderam ampliar a disseminação da Libras por meio de palestras e eventos on-line − como conferências, seminários −, permitindo o aprimoramento do uso dessa tecnologia. A mídia visual atualmente permite a criação de um Espaço Surdo também na Internet e, assim, a luta, a pesquisa, os estudos e o ensino não são interrompidos, permitindo-lhes seguir o seu curso na história. Esta ferramenta tecnológica e midiática permite atingir locais mais remotos e distantes, como convidar e receber, de forma virtual, palestrantes e pesquisadores internacionais na área de Línguas de Sinais e/ou Estudos Surdos. O Brasil está, portanto, entrando na arena internacional.
Em meu país de origem, esse desenvolvimento que surgiu após a pandemia é semelhante, mas aconteceu e acontece de forma lenta, pois os alemães não possuem muita afinidade com a tecnologia midiática, o que demanda mais tempo para encaixar o uso no cotidiano profissional e acadêmico. O “boom” dos eventos on-line de surdos e da DGS ocorreu depois de seis meses, enquanto, nesse tempo, o Brasil já estava alguns passos à frente da Alemanha, tanto técnica como politicamente.
Com o aumento das restrições impostas pelo nível de alcance da pandemia, minha primeira visita ao Brasil ocorreu após quatro anos e, dessa vez, eu iria como doutora. Fui para um grande evento que reuniu vários surdos doutores, pós-doutores, e doutorandos, na UFSC. O grande número de participantes me impressionou: em torno de 70 alunos surdos doutores e pós-doutores. Esse número continuou a crescer, apesar dos problemas políticos e econômicos e das consequências da pandemia. Em níveis internacionais, este é um desenvolvimento absolutamente notável no empoderamento das pessoas surdas, especialmente no meio acadêmico. Com tantos acadêmicos surdos pesquisando e publicando ativamente, a Libras está experimentando um aprimoramento intenso dos estudos na linguística de textos e léxico (novos tipos de textos e termos técnicos), permitindo a consolidação do uso consciente da língua. Um exemplo disso é o lançamento do V-Book Gramática de Libras, publicado em março de 2022, um fato único no mundo: uma gramática gravada inteiramente em Língua de Sinais e apoiada com dados do corpus (o que lhe confere alto grau de autenticidade e representatividade). A experiência de produção de textos e a vivência de muitos acadêmicos surdos na sua Língua de Sinais certamente ofereceram uma base sólida para a publicação de obras inteiramente em Libras e, assim, garantiram a transferência de conhecimento para a Comunidade Surda por muito tempo, além de reafirmarem o status político-linguístico da Libras nos espaços governamentais e públicos.
Graças às mídias sociais e ao trabalho incansável de muitos acadêmicos surdos, o mundo também tomou consciência do intenso e rápido desenvolvimento que a Comunidade Surda no Brasil tem demonstrado até agora. Cito aqui dois exemplos: vários são os palestrantes internacionais convidados e confirmados em dois Congressos a serem realizados em junho e julho deste ano − o Congresso Nacional de Pesquisas em Linguística de Língua de Sinais e o Congresso de Pesquisas em tradução e interpretação de Libras e Língua Portuguesa. O segundo exemplo é a representação da cidade de Caxias do Sul (RS) como sede das Deaflympics, que ocorrerá em maio. O Brasil ganhará ainda mais destaque e atenção internacional ao ser o primeiro local latino-americano a sediar as Olimpíadas Internacionais. Não podemos prever o nível e a qualidade do impacto que isto terá na Comunidade Surda do Brasil e na Comunidade Surda internacional, mas será interessante observar os frutos desse Espaço Surdo.
Na Alemanha, há poucos doutores e estudantes de doutorado surdos, e esses poucos são de áreas diferentes que, muitas vezes, não estão relacionadas entre si (como Medicina, Linguística, Biologia). A razão pela qual há tão poucos é devido ao sistema educacional rígido e cheio de barreiras no país, que mencionei brevemente nos parágrafos anteriores. Há poucos recursos humanos e acadêmicos aqui para gerar um livro gramatical comparável à Gramática da Libras com dados linguísticos autênticos e representativos. Entretanto, há esforços e planos para produzir algo semelhante para a DGS e o Brasil é um bom exemplo a ser seguido, graças aos estreitos contatos entre várias universidades do Brasil e da Alemanha. Isto não só impulsionará o desenvolvimento da DGS, especialmente do ponto de vista linguístico e lexical, mas também elevará o status do DGS a nível político- linguístico.
A Alemanha já sediou a Deaflympics, na cidade de Colônia, em 1981. O impacto de sediar as Olimpíadas Surdas sobre a Comunidade Surda Alemã quase não foi pesquisado até agora e só é tangível nas narrativas de muitas pessoas surdas. Desta vez, graças à moderna tecnologia de vídeo e de comunicação, bem como ao pessoal treinado (gerando espaço para pesquisadores e estudiosos), o Brasil tem uma excelente oportunidade para documentar as Deaflympics e para pesquisar os efeitos antes, durante e após o término dos Jogos.
Apenas alguns exemplos de mudanças foram relatados aqui. Eu os escolhi porque eles foram os que mais me marcaram; são inúmeras transformações, mas não cabem em um simples artigo. O que posso concluir é que meu conceito inicial do Brasil como um país que ainda precisava se “desenvolver” estava completamente equivocado. Muito pelo contrário, os fatores que definem o Brasil política e economicamente o tornam um país desenvolvido para a Comunidade Surda e será, ou talvez já seja, um modelo para a maioria das Comunidades Surdas no mundo, atualmente e no futuro. Uma Comunidade Surda estável em grande número, com muitos Líderes Surdos fortes e bem competentes no uso empoderador da sua língua, um espaço para a Libras consolidado, na sociedade e na política brasileira. A política linguística focada no Povo Surdo, com oferta de bolsa de estudos e ensino em Libras, Estudos Surdos, interpretação em Libras e Língua Portuguesa, promoção e criação constante de Espaços Surdos em universidades, escolas e associações, isso tudo faz do Brasil um país desenvolvido no ponto de vista dos estudiosos das Línguas de Sinais e das Comunidades Surdas em todo o mundo. A cada ano, em cada visita ao Brasil, me impressiono e me surpreendo positivamente com todo esse crescimento.