A edição do dossiê especial “Mulheres Surdas” é dedicada à artista e professora surda Fernanda Machado (figura 1). Nascida no Rio de Janeiro em 1979, Fernanda é a única surda em uma família de ouvintes. Sua surdez foi descoberta tardiamente, o que causou dificuldades iniciais de comunicação. No começo, a comunicação era caseira, utilizando sinais combinados com gestos. Fernanda aprendeu Libras ao ingressar na escola especial e ao participar da Associação de Surdos do Rio de Janeiro, da Alvorada e de Niterói, onde recebeu o apoio da família, que aceitou a Libras como sua língua. Com a aquisição da língua de sinais, Fernanda se desenvolveu plenamente nos aspectos sociais, profissionais e acadêmicos, impressionando sua família com seu progresso.
“Meu primeiro contato com a produção artística em Língua de Sinais Brasileira foi com o professor de teatro, Nelson Pimenta. Foi ele quem me ensinou elementos básicos da língua de sinais como as regras para seu uso, configurações de mão, ritmo, bem como os gêneros textuais, tais como, contos, histórias e fábulas, presentes em um DVD sobre poesia da DSP (Dawn Sign Press). Esse DVD continha poemas e contos de surdos reconhecidos. Quando assisti esse conto pela primeira vez, eu não conhecia a Língua de Sinais Americana – ASL, porém o uso dos elementos visuais como a expressão facial, espaço e movimento dos ombros favoreceu minha compreensão, ou seja, a estrutura utilizada, o modo como a história foi contada fez com que eu internalizasse as nuances da história.”Atualmente, Fernanda é professora de Libras e de Literatura Surda na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Seu doutorado em Estudos de Tradução pela UFSC resultou na tese “Antologia da Poética em Língua de Sinais Brasileira”. A tese apresenta uma antologia
de poesias em Língua Brasileira de Sinais, coletando e analisando minuciosamente produções poéticas de autores surdos proficientes. A análise abrange características estilísticas, temas, elementos poéticos como ritmo e rima, e o contexto das publicações. A antologia visa registrar essas obras em vídeo, promovendo a educação dos surdos brasileiros. A coleta de material foi feita em DVDs, YouTube, redes sociais e eventos específicos. Fernanda, atualmente, está coordenando a criação da Antologia de Poesias em Libras, que servirá de referência para o projeto de pesquisa envolvendo a Documentação de Libras e a Antologia de Literatura em Libras. Faz, ainda, parte do Grupo de Pesquisa Corpus de Libras e fez parte do Grupo de Pesquisa Literatura em LIBRAS.Fernanda também possui mestrado pela UFSC, com a dissertação intitulada “Simetria na Poética Visual na Língua de Sinais Brasileira”. Essa pesquisa investiga a literatura surda através de vídeos de poemas de Nelson Pimenta e Alan Henry, analisando o uso criativo da língua e padrões literários. A pesquisa valoriza a produção dos poetas surdos e identifica características específicas da literatura em Língua de Sinais Brasileira, comparando com estudos de literatura em Línguas de Sinais Britânica e Americana.A Professora de Literatura Tânia Ramos, que é muito importante na UFSC e fez parte da banca examinadora de qualificação da tese da Fernanda, destacou o impacto significativo de sua tese, que foi totalmente produzida em Libras. Ela ressaltou a importância desse trabalho para a cultura surda, para a cultura brasileira e para a Universidade Federal de Santa Catarina. Tânia enfatizou que Fernanda, sendo uma poeta e professora de Letras Libras, usa metalinguagem em seus sinais poéticos. Com seus sinais, Fernanda pensa os próprios sinais poéticos. Portanto, é fundamental que sua tese seja apresentada em Libras para preservar seu significado e importância. Ela afirmou que o trabalho perderia todo o seu valor se fosse escrito em português e concluiu destacando a necessidade fundamental de apresentá-lo na Língua Brasileira de Sinais.Desde criança, Fernanda sempre foi deslumbrada com desenhos, como os do Mickey e, a partir daí, surgiu sua paixão pelas artes. Ela começou a desenhar usando papéis de rascunho que sua mãe trazia do trabalho e, desde então, se considera uma artista. Para aprofundar seus estudos, ela se matriculou em um curso de desenho e posteriormente ingressou na faculdade de Artes Plásticas pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV, acumulando vasta experiência. “Quando comecei a trabalhar senti falta de estudar algo ainda com mais profundidade e percebi que o conhecimento adquirido estava me encaminhando ao Mestrado e ao Doutorado. Comecei a procurar um local referência para fazer meu Mestrado e soube que, em Santa Catarina, Florianópolis, tinha na UFSC e na época eu morava no Rio de Janeiro e trabalhava em 4 escolas. Mesmo assim, comecei a sentir a necessidade de cursar meu Mestrado. Fui aprovada e larguei tudo, mesmo com dor no coração, sabendo que sentiria saudades, me mudei e comecei a subir mais um degrau em minha vida acadêmica.”No campo das Artes Cênicas, Fernanda teve contato com o teatro devido à sua formação acadêmica, contribuindo com dicas sobre cores e vestimentas no grupo Teatro Brasileiro de Surdos (TBS), do Centro Integração Arte de Cultura Surda (CIACS) e Grupo de Palavras Invisíveis no Grupo Moitará (Projeto Ponto Cultural). Por isso, a artista explora, em suas obras, sua experiência na literatura surda, experiência literária em libras, libras, estudos surdos, tradução em libras, arte surda, cultura surda, linguística em libras e educação de surdos. Em Artes Visuais, sua produção inclui escultura, gravuras, artesanato e aquarela. Nas Artes Plásticas, ela foi professora no Centro Educacional Pilar Velazquez, escola bilíngue de surdos onde ela também foi aluna, incentivando os alunos a explorar a arte. Fernanda aprecia todas as áreas artísticas e está aberta à possibilidade de, no futuro, criar um espaço específico para promover exposições ou um museu de artes surdas. Em 2014, criou o curso de extensão para criação de novas poesias que serviram de insumo para sua pesquisa. Coordena, como diretora, o Festival Folclore Surdo, um festival de arte surda que inclui vários tipos de manifestações literárias em Libras, com realização de 2 em 2 anos e com o apoio da professora Rachel Sutton-Spence e de Tarcisio Leite. Até o presente momento, o Festival Folclore Surdo é ativo nas redes sociais e os cursos de poesia são oferecidos anualmente de forma gratuita nas modalidades presencial e EAD pela plataforma Moodle. Fernanda é, ainda, a responsável pelo Festival Folclore Surdo ter parceria com um Festival de referência mundial em arte e cultura surda - Clin d’Oeil - realizado na França. Esta parceria trouxe visibilidade para a arte e a cultura surdas brasileiras e, assim, surgiram trocas e novas parcerias com outros países e festivais como África do Sul, Argentina, Bolívia e EUA.Segundo Fernanda, a definição de Artes Surdas é composta por experiências riquíssimas que refletem a cultura, identidade e vivência surdas, bem como a língua de sinais. Ela destaca a percepção subjetiva do artista surdo, expressando trajetórias e sentimentos através da arte, seja de forma positiva ou negativa. As expressões negativas podem abordar temas como opressão e discriminação, enquanto as positivas celebram conquistas, evolução da língua de sinais e empoderamento surdo. Fernanda acredita que a sociedade pode compreender melhor as comunidades surdas ao explorar a riqueza das línguas de sinais e das artes surdas.Antes de seus estudos acadêmicos, Fernanda via o desenho como uma atividade comum e prazerosa. Hoje, ela entende que a formação em Artes é fundamental para adquirir conhecimentos profundos. Além disso, valoriza conceitos como “Deaf Hood”, cultura, experiências, identidade e narrativas surdas, incluindo as próprias experiências do artista surdo. Fernanda realiza análises de desenhos sob o olhar surdo, comparando obras antes e depois de sua formação acadêmica.
“Estudei nessa escola onde tive aulas de teatro com o Professor Nelson Pimenta e posso dizer que foi onde tudo começou. O conhecimento que ele repassava em suas aulas era em decorrência das suas viagens para os EUA, na Universidade Gallaudet, Washington – D.C, National Theatre of The Deaf – NTD, de Nova York , onde teve contato com diversas pessoas da área, como Ella Mae Lentz, Ben Bahan, Clayton Valli e Marlon Kuntze.”Influenciada por figuras como Nelson Pimenta e Ana Regina Campelo, Fernanda descobriu a representatividade e profundidade das Artes Surdas. Atualmente, ela acredita que pode contribuir significativamente para a comunidade surda ao explorar e promover as Artes Surdas, causando um impacto positivo na compreensão e valorização da cultura surda.Fernanda dedica a capa da Revista Espaço às mulheres surdas, especialmente à Sônia Maria de Jesus, uma surda negra que foi escravizada por um desembargador de Santa Catarina. Vamos conhecer os quadros de pintura mais significativos de sua vida artística.