Quando a Perspectiva Surda focalizou a construção do documento homérico “A Educação que nós Surdos queremos”, no ano de 1999, não se imaginava que ele desencadearia Movimentos e Lutas Surdas ao longo desses últimos anos. Se a construção do documento propôs ter presente a enfatização de nossa Cultura Surda no sistema educacional brasileiro, também propôs o despertar de uma grande conscientização e mobilização.
Sabemos, por meio de narrativas surdas passadas de geração para geração, que, antes de nós, nossos ancestrais surdos desenvolveram a mesma luta. Trazemos, dentro de nós, essa herança histórica e traços culturais que estavam nos pouquíssimos escritos de nossos antepassados, os quais foram sepultados, há quase dois séculos nas bibliotecas pelas práticas audistas. Os registros de nossos ancestrais foram apagados e/ou perdidos ao longo da história. Desta forma, objetivamos trazer a normalidade de ser surdo para o campo consciente do século XXI com a presente obra. Era preciso subverter as práticas audistas sedimentadas na educação por muitos anos, que passaram por diferentes períodos, desde o oralismo até os variados tipos de bilinguismo. Outrossim, foi imprescindível a superação dos entraves das práticas audistas na educação, nas quais se perpetuou o epistemicídio de nossa cultura. Com o presente documento, mantivemos entre nós a prática de nosso jeito de ser e de pensar surdos.
Esta edição objetiva documentar os mais de 20 anos da caminhada para a Educação bilíngue no país, bem como registrar os ciclos de acontecimentos ocorridos nesses anos na Comunidade Surda Brasileira, cujos resultados hoje apontam para uma construção de uma efetiva Educação Bilíngue. A Educação Bilíngue compatível ao jeito de ser do estudante surdo, sem seguir um ensino impositivo “que não considera o seu lugar de fala, seus anseios e suas necessidades, vistos sob o olhar da pessoa surda”.
Para este dossiê, convidamos diferentes autores para delinear e ponderar seus pensamentos a respeito do título da obra, resgatando, assim, olhares outros, posições e episódios vividos em 1999. Abaixo, os protagonistas do espaço que abrimos aqui.
Na seção Dossiê contamos com os seguintes autores e temáticas:
A Profa. Dra. Renata Heinzelmann aborda sobre a Literatura Surda como aquela que se relaciona às Histórias, à Identidade e à Cultura Surdas, presentes em narrativas de Autorias Surdas. A autora evidencia a ausência de processamento do conhecimento do Mundo Surdo, por parte dos professores ouvintes, e cita, por exemplo, o pouco incentivo no uso de vídeos e materiais visuais.
O Prof. Dr. Cláudio Mourão e a Profa. Me. Bruna Branco, em seu artigo, contam episódios reveladores sobre o CONAE - Conferência Nacional de Educação de 2010, na luta e na resistência dos surdos para incorporarem as propostas condizentes com a Educação de Surdos nesse evento. Os participantes surdos sofreram audismo por parte dos dirigentes da educação especial do então Ministério da Educação.
O artigo de Carolina Hessel Silveira tece considerações sobre a importância do documento: A EDUCAÇÃO QUE NÓS SURDOS QUEREMOS. O artigo acentua a relevância do humor surdo, não somente como diversão da Comunidade, mas também serve ao fortalecimento da Identidade Surda.
A Profa. Dra. Gisele Rangel grifa a importante descoberta da pedagogia do surdo que, segundo a autora, é fruto de reflexão e de ação inicial dos professores e pesquisadores surdos do sul do Brasil. Os constantes estudos e debates resultaram na concepção atual de Educação Bilíngue.
A Profa. Dra. Flaviane Reis realça a conquista dos professores surdos em sua trajetória histórica cultural, desafiando as relações de poder na Educação Superior. Os resultados apontam não só as condições iniciais de angústia, dúvidas e dificuldades, como também a vontade de discutir na academia as lutas travadas no lugar de fala, enfatizando o valor do reconhecimento cultural e linguístico no contexto universitário.
A Profa. Dra. Patrícia Rezende-Curione traz o artigo que aborda questões inquietantes e litigiosas atuais sobre as Escolas Bilíngues de Surdos, cujos espaços propiciam a formação e a constituição de comunidades linguísticas legítimas, porém, que são constantemente rotuladas como espaços de segregação. A escritora nos convida a um debate necessário, que leva à reflexão por todos os envolvidos com a Educação de Surdos.
Ricardo Ernani Sander ressalta a visibilidade da língua, dos surdos e da figura do profissional intérprete. O agito na história da construção da profissão de tradutor/intérprete de Língua de Sinais – Tils – vem narrado por recortes pessoais, que são fundamentais para que a história dos movimentos dos Tils seja assim registrada e consolidada. O autor sente o orgulho em ter feito parte do grupo que colaborou para que a Educação Bilíngue de Surdos no Brasil fosse construída.
Ana Paula Lara e Roberta Messa tecem um relato de experiência sobre os achados de sua investigação na região da fronteira, em Alegrete-RS. Apontam aspectos relevantes na necessidade de ampliar as discussões acerca das Lutas Surdas, assim como inserir novas ações que visem à garantia dos direitos dos sujeitos surdos e a importância da extensão universitária na promoção de conscientização sobre a Cultura Surda.
Shirley Vilhalva e Elaine Oliveira trazem recortes da história cultural e política dos surdos de Mato Grosso do Sul, traçando uma linha de acontecimentos e ações que foram realizadas antes, durante e depois do presente documento. Há um foco especial nas questões dos indígenas surdos, do movimento das mulheres surdas e, efetivamente, no Protagonismo Surdo de pesquisadores e professores surdos daquela região.
Na seção Debate Técnico-Pedagógico, contamos com dois estudos muito interessantes que relatam a experiência de uma pesquisadora surda estrangeira pelo solo brasileiro e a luta das Lideranças Surdas da Feneis em tentativas de negociação pelos direitos linguísticos dos cidadãos surdos com o Ministério da Educação brasileiro.
Nossa convidada internacional é a Profa. Dra. Liona Paulus, surda de nacionalidade alemã, que esteve no Brasil em meados da década de 20; mais precisamente visitou o sul do Brasil, fazendo intercâmbio nas escolas de surdos do Rio Grande do Sul. Esteve também em Santa Catarina durante a criação de Letras Libras na Universidade Federal de Santa Catarina, que é considerado um grande feito pioneiro por grande parte das Comunidades Surdas Internacionais. A professora surda Liona lançou olhares sobre a perspectiva da educação brasileira, dos avanços que conquistamos com o documento A EDUCAÇÃO QUE NÓS SURDOS QUEREMOS, afirmando que há avanços comparativamente superiores no Brasil em relação à Alemanha. O relato dela é instigante e fundamental para uma visão mais ampla e mais completa.
Bruno Mineirinho e Patrícia Rezende-Curione relatam sobre o percurso da atuação da Feneis para a reivindicação da tradução/interpretação do ENEM em Libras, descrevendo os bastidores da pressão realizada perante as autoridades governamentais até o esgotamento do diálogo. Neste momento, a Feneis adotou a via judicial. O lastro fundamentado por legislações nacionais e internacionais tornou o Enem uma realidade vitoriosa, ou seja, em Libras desde 2017.
Na seção Produção Acadêmica, destacamos o trabalho desenvolvido pelo pesquisador surdo Prof. Dr. Elias Paulino da Cunha Junior no programa de Pós- graduação em Linguística Aplicada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na pesquisa intitulada “Identidades por meio de novas categorias pelo trabalho em territórios educativos: Surdos Professores”, o pesquisador nos leva atenciosamente por um passeio por diversos conceitos que nos vão aludindo seus argumentos. Sua construção propõe que vejamos o ser surdo como uma condição que reterritorializa e modifica os modos de ser professor, como alguém que, pelo trabalho, compreende a responsabilidade de mudar o mundo.
Na seção Visitando a história dos Surdos concentramos os relatos e
reflexões ligados às manifestações públicas de Coletivos Surdos com as seguintes temáticas e autores:
A militante surda e Profa. Me. Carilissa D´Alba analisa os efeitos da trajetória histórica do presente documento intitulado A EDUCAÇÃO QUE NÓS SURDOS QUEREMOS. Este documento marcou significativamente a Educação de Surdos no Brasil devido aos seus efeitos geradores para o avanço da Educação de Surdos nos anos posteriores, tais como o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais - Libras, Lei n°10.436 de 24 de abril de 2002, e o Decreto n° 5.626 de 22 de dezembro de 2005, cujos documentos culminaram na criação do curso superior universitário de Letras Libras e os movimentos de surdos pela criação de escolas bilíngues em todo o território nacional.Os autores surdos Prof. Me. Adilson Busse, Profa. Esp. Rosana Grasse, Profa.Esp. Roberta Gomes e o ouvinte bilíngue Prof. Me. Ramon Linhares partem das preliminares do orgulho em ser surdo. Trazem a autoafirmação e autodeterminação conquistadas ao longo da história na assimilação da identidade individual e coletiva do ser surdo. Esse artigo em específico retoma a memória da Passeata e Caminhada do Orgulho Surdo no Rio de Janeiro e como essa manifestação pública foi importante para a formação do Imaginário Coletivo Surdo Brasileiro.
Augusto Schallenberger, Carlos Roberto Martins, Cristina Laguna e Emanuelle Castro enfatizam a oportunidade de reflexão da FENEIS sobre os acontecimentos à época da criação do documento, com os acontecimentos atuais. Percebem que a trajetória fortaleceu a entidade, tornando-se mais sensível, mais humana e mais empática. Os autores sentem-se honrados por fazerem parte dessa história.
Finalizando com a seção Arte e Cultura Surda homenageamos o multiartista surdo Silas Queiroz. As curadoras surdas Patrícia Rezende-Curione e Rosana Grasse narram um pouco da história e do percurso desse artista, levando-nos a conhecer mais sua obra e carreira artística nas artes plásticas, poesia, cinema e teatro.
Finalizamos reforçando que o conjunto de autores e autoras que compõem essa edição são protagonistas vivos de Lutas Surdas, validando nossos esforços que existem há muito tempo. Alguns autores se dedicam a enfatizar nossas práticas culturais – identidade, língua, literatura –, outros se dedicam à repressão dos nossos lugares de fala, pois em diferentes espaços culturais ocorrem, naturalmente, os retrocessos, as revoltas, as lutas infindas e as resistências continuamente. As disputas se sucedem tanto em estruturas de ambientes governamentais, institucionais, familiares, quanto nos espaços vivenciais das lutas diárias no trabalho, na educação, na saúde e no social. O caráter visual da Língua de Sinais nos diferencia e nos impele a sermos protagonistas da nossa própria epistemologia, no processo de visibilidade, reconhecimento e valorização linguística e cultural.
Desse modo, desde 1999, quando construímos e propagamos o documento “A Educação que nós Surdos queremos”, muitos avanços e conquistas alcançamos. Nada, porém, foi fácil ou trilhado em atalhos sem espinhos. Cada evento de luta, de resistência, de fortalecimento, foi para a constituição do modo de ser surdo que temos hoje. Poderíamos chamar de renascimento do nosso Protagonismo Surdo, despertar da nossa vontade adormecida por imposição de outrem por muito tempo. Outrossim, tivemos pessoas ouvintes como aliadas às nossas lutas e reivindicações. Nesses embates ao longo dos 23 anos, foi traçada e constituída a trajetória nossa, tendo como meta uma Educação de qualidade para as gerações próximas de surdos.