ESPAÇO ABERTO: Interpretação em Língua de sinais: um olhar mais de perto.

Revista Espaço

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ISSN: 25256203
Editor Chefe: Wilma Favorito
Início Publicação: 31/12/1989
Periodicidade: Semestral
Área de Estudo: Educação, Área de Estudo: Letras, Área de Estudo: Linguística, Área de Estudo: Multidisciplinar

ESPAÇO ABERTO: Interpretação em Língua de sinais: um olhar mais de perto.

Ano: 2000 | Volume: Especial | Número: 14
Autores: Cleidi Lovatto Pires, Maria Alzira Nobre.
Autor Correspondente: Cleidi Lovatto Pires | [email protected]

Palavras-chave: Educação de Surdos

Resumos Cadastrados

Resumo Português:

Nos últimos trinta anos, aproximadamente,discussões em torno de metodologias de ensino,escola inclusiva,curículos escolares, entre outras, têm possibilitado novos olhares sobre a educação de surdos.Esses estudos estão balizados na aceitação da Língua de Sinais(LS) como essencial à vida do surdo e nos estudos sobre a LS e sobre a pessoa surda. E, a partir dessa reflexão,emerge a participação das pessoas surdas nos projetos referentes às suas próprias vidas. Através da LS,o surdo constitui-se enquanto sujeito imerso no mundo,compossibilidade de situar-se no seu momento histórico.Aqui se insere o trabalho de intérprete de LS, tendo em vista a solicitação feita pelos surdos no XIICongresso Mundial de Educação dos Surdos,ocorrido na Áustria,em 1995,e encaminhada à Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos(FENEIS):“É preciso colocar em andamento a capacitação de intérpretes de LS e prover serviços de interpretação.”(FENEIS,1996,p.4).A necessidade de pesquisar sobre questões relativas ao intér-prete emerge,então,dos estudos sobre bilinguismo e surdez,considerando que a pessoa surda apresenta uma língua própria, mas convive com a língua oral(LO),geralmente como segunda língua.Em consequência,na medida em que as pessoas surdas necessitam ou desejam se comunicar com os ouvintes,isso usualmente lhes ocasiona problemas,até mesmo emocionais,pela ineficiência dessa comuni-cação. Esse é o momento em que o intérprete se torna relevante na mediação do contato entre surdos e ouvintes.O intérpretede LS, hoje, insere-se no cotidiano das pessoas surdas em centros universi-tários,consultórios médicos,tribunais,enfim,onde haja necessidade de um intermediário entre a língua portuguesa oral e a LS.A história demonstra que avanços na área da interpretação já foram alcançados.SOLOW(1996)afirma que o intérpretede LS era uma pessoa que trabalhava com pessoas surdas e, em decorrência desse convívio,aprendeu a LS. Muitos desses voluntários trabalhavam por generosidade,mas, sem dúvida,ajudaram a formar intérpretes geração após geração.A realidade brasileira em relação à interpretação é bastante difícil,pois o intérprete encontra poucas possibilidades de exercício profissional,com remuneração muitas vezes injusta e difícil acesso a estudos na sua área de atuação.A FENEIS é a entidade que oferece cursos de formação de intérpretes,dentro e fora do Riode Janeiro.Essa Federação também é responsável por manter o cumprimento do Código de Ética dos Intérpretes para Surdos,com seus direitos e responsabilidades.Hoje,podem-se apontar algumas conquistas nessa área,como a criação da Central de Intérpretes em Porto Alegre,atualmente com quarenta intérpretes registrados;a autorização para a criação da carreira de intérpretes no município do Rio de Janeiro,ocorrida em 1995,e no estado do Maranhão,ocorrida em 1993.Traduzir é passar um texto escrito de uma língua-fonte para uma língua-meta.Língua-fonte é a língua dos textos a traduzir e língua-meta é a língua dos textos traduzidos.Entretanto,quando o texto for oral,diz-se que há interpretação,e quem a realiza é o intérprete.No seu trabalho,o tradutor dispõe de tempo,podendo uti-lizar estratégias como glossários,notas de rodapé,comentários etc.Já o intérprete age com rapidez de ritmo e limitação de tempo,pois a presença do emissor,segundoRONAI(1987),“força o intérprete a poucas possibilidades de refletir sobre o texto da língua-fonte.”Do intérprete são exigidos raciocínio rápido,intuição,capacidadede dedução,concentração e memória.É importante salientar que interpretar não é tarefa fácil,pois não se refere a um ato mecânico;não basta substituir palavras da língua A por equivalentes na língua B. Dentre tantas exigências e questionamentos colocados ao ato de interpretar,está a possibilidade de haver ou não fidelidade no momento da interpretação.Deve-se considerar que interpretação fiel não significa interpretação literal,pois esta última torna-se impossível,na medida em que não existem línguas estruturalmente idênticas,com equivalência absoluta entre seus enunciados.Além desses aspectos,há particularidades na interpretação em LS, dadas as diferenças de modalidadee estruturanas línguas em questão.BRITO(1993)diz que existe uma diferença sensível entre conhecer o mundo através do inglês e do português,que são duas línguas orais.Essa afirmação tem a ver com a hipótes e de WHORF(1973),segundo a qual vemos o mundo da maneira como nossa língua nos condiciona a vê-lo.A particularidade relevante no caso da interpretação em LS refere-se ao fato de que as línguas orais(auditivo-verbais)e sinalizadas(viso-gestuais)possuem canais de recepção e produção diferentes,o que,seguramente,individualizaa maneira como os usuários de cada língua percebe me interpretam o mundo.A partir dessa realidade,visões de mundo diferentes entre emissor, intérprete e receptor,surge a polêmica sobre a fidelidade na interpretação.Pois as cosmovi-sõesse apresentam segundo as diferentes estruturas lingúístico-culturais e coexistem e muma possível situação de servidão do intérprete,no momento do ato interpretativo.MOUNIN(1975,p. 56) coloca que:“C.)ao falarmos do mundo em duas línguas diferentes,jamais estamos falando precisamente do mesmo mundo,de modo que a tradução não somente não é legítima de uma língua para outra,como também,cientificamente falando,não é materialmente possível”A intradutibilidade na cultura resulta,paralelamente,de não existirem situações idênticas na cultura de uma língua e na de situações nascema partir do susuários de uma determinada língua.Neste caso,as holófrases— conceitos que só têm designação dentro de um idioma— seriam um obstáculo importante no trabalho de tradução e interpretação.Quando ocorre essa situação na interpretação em LS, o intérprete poder e correrao alfabeto datilológico, como recurso de substituição das palavras ainda não sinalizáveis.Em qualquercaso,o intérprete deve conhecer com profundidade a língua-meta,o que vai facilitar sua atividade,e também deve dominar a língua-fonte,o que lhe vai permitir a compreensão da sintençõesdo autor,encontrandoos termosequivalentespossíveisduranteo ato interpretativo.Um acondiçã o que colabora para o êxito na interpretação é o acesso com antecedência ao texto da língua-fonte.Quando esse contato for possível,com certeza o intérprete poderá fazer uma análise mais detalhada das propriedades do material textual a ser interpretado.No momento em que o intérpretese familiariza como texto,ele poderá verificar,por exemplo,casos de polissemia,ou seja,situações em que uma palavra de nota diversos sentidos;podendo então refletir sobre as intenções do autor e encontrara expressão mais adequada.CAMPOS(1987,p. 52-53)alerta-nos para isso,afirmando que é uma espécie de norma ler pre-viamenteo texto a ser interpretado,como objetivo de obter uma visão global da obra.Isso traz à tona da memória do intérprete elementos do seu acervo cultural,conhecimentos gerais específicos em relação ao assunto.Lapsos de memória redundam em algumas situações indesejáveis,onde a interpretação pode apresentar falhas que nem sem presão percebida se, por isso mesmo,são mais perigosas.CAMPOS(1987)apresenta os seguintes casos:amplificação,condensação,omissão e explicitação de ítens da mensagem.Há também que considerar que uma palavra colocada fora do contexto em re-lação ao assunto da língua de partida pode ocasionar distorções graves das intenções do autor.É necessário muito cuidado no sentido de não deturpar as palavras do emissor.Outro fator que interfere na fidelidade da interpretação inclui o aspecto ideológico da linguagem,apontadoporVOLOCHINOV(apudBORDENAVE,1988,p. 20-21):“A linguagem é a materia-lidadeespecíficada ideologia.[...E]atua como sua transmissora e perpetuadora.Ela confirma os sistemas de crença que legitimam as instituiçõesdepoder”.FOUCAULT(apudBORDE-NAVE,1988,p. 20-21)acentua que não se pode separar o conhecimento lingúístico do ideológico;e como,através de vários mecanismos,o discurso é disciplinado.É o princípio do proibido.Não se pode falar de tudo.Não se pode falar de tudo em qualquer circunstância.Não se pode falar de tudo para qualquer pessoa.Diz também que o sentido do discurso se origina em outros discursos previamente existentes,que lhe fornecem matéria-prima.Isso remete aos discursos pre-existentes na experiência do intérpretee nos assegura que há questões a serem considerada sem relação à sua subjetividade.Pois será ele capaz de agir como um filtro no momento da inter-pretação,despindo-se da sua cosmovisão,agindo com neutralidade?O presente estudo tratou de questões referentes à possibilidade de haver ou não fidelidade em atos interpretativos realizados em três cidades do RS, denominadasA, Be C. Para tanto,foi filmada a atuação de um intérprete em cada cidade,interpretando dois textos.Após,os textos foram recontados por um sujeito surdo e, subse-quentemente,um segundointér-preteassistiuà recontagemereescreveuos textosem portu-guês.Os textosfinaisforamcom-paradoscomos textosiniciais,usando-sea análisede conteúdoeas proposiçõesrecuperadasnotextofinalem relaçãoao inicial,quandopertinente.A fidelidade demonstrou ser bastante variável durante os atos interpretativos relacionados às interpretações A, Be C. As discre-pâncias ocorreram por causa de vários fatores.A interpretaçãoA apresentou qualidade preponderante em relação ao tema deste trabalho.Apesar de os intérpretes1 e 2 terem cometido alguns atos de infi-delidade,esses não interferiram no conteúdo do texto final de modo a modificar seriamente seu significado.Esses intérpretes convivem cotidianamente com língua/culturameta,o que é um fator que contribui para o êxito no trabalho interpretativo(SOLOW,1996).A situaçãoA diferedasdemais interpretações pelo fato de que seus intérpretes estãoampliando seus conhecimentos atravésde estudosna áreade edu-caçãode surdos.Isso garante uma concepção diferenciada sobre a surdez,concepção que parece ter evitado infidelidades durante o ato interpretativo,resultantes de preconceitos sobre a capacidadede o surdo compreender a mensagem que está sendo interpretada.Já o sujeito surdo,ao recontar os textos,reconstruiu as proposições preservando fatos de maneira coerente e plausível.Esse êxito pode ser atribuído ao contexto de escola especial na qual o sujeito está inserido,onde cotidianamente adquire conhecimentos e mantém contato como intérprete,que atua na escola também como professor.Isso propicia ao surdo uma melhor compreensão das mensagens transmitidas através desse intérprete.Além disso,o sujeito surdo apresenta fluência em LS, o que também otimiza o intercâmbio comunicativo entre sujeito surdo e o intérprete de LS.Na interpretaçãoB, o primeiro intérprete,particularmente durantea interpretação do texto1,citou um exemplo ao introduzir o texto,inserindo a escola na qual atua,provavelmente na tentativa de torná-lo mais compreensível para os sujeitos surdos.Isso,por si só, caracteriza uma situação de amplificação.O sujeito surdo,porsua vez, no momento de recontaro texto,conduziu a recontagem partindo de sua vida pessoal;assim,o conteúdo do texto final diferenciou-se daquele do texto inicial completamente.Parece que,ao exemplificar,o intérprete sugeriu ao surdo que outros e emplos poderiam ser incorporados ao conteúdo textual.O mesmo não ocorreu com relação ao texto 2, ou seja,não houve exemplificação,logo o sujeito surdo não modificou as intenções do autor,expressadas no texto inicial.Na interpretação B, o pri-meiro intérprete,apesar de conviver cotidianamente com as pessoas surdas,praticando a LS, não frequenta curso de pós-graduação,fator que parece ter demarcado a diferença qualitativa entre as interpretações A e B, em relação à fidelidade ao ato interpretativo.Na interpretação C, o primeiro intérprete também usou exemplos durante a interpretação do  texto1, o que foi provavelmente um dos fatores que levaram o sujeito surdo a recontaro texto baseadona sua história de vida.E, subsequentemente a essa interferência,o segundo intérprete foi infiel ao reescrever o texto,omitindo termos essenciais ao conteúdo do textoinicial.A mesma situação discrepante o correu como texto2, na interpretaçãoC. O primeiro intérprete,porém,não exemplificou,mas amplificou de outras maneiras,omitiu termo se fez substituições.O sujeito surdo recontouo texto de maneira repetitiva,com idéias truncada se destoantes daquelas do texto inicial,incorporando sua própria experiência e visão de mundo ao texto.O segundo in-térprete,por sua vez,proporcionou situações de omissão e amplificação que redundaram numa grande distorção do texto final quando comparado ao inicial.A interpretaçãoC diferenciou-se nitidamentedasdemais.Ossujeitossurdosestãoinseridosemclassesregulares,os professoresnãodominama LS e, na sala de recursos,também com pouca fluência em LS, os professores uti-lizam uma comunicação bimodal.Outro fator que pode ter interferido na qualidade da interpretação é o pouco contato que a comunidade escolar tem com intérpretes de LS; além do fato de os alunos estarem inserido sem uma classe regular,nessa escola não há intérpretes,nem mesm um projeto no qua participem intérpretes,o que prejudica a interação comunicativa entre professor e se alunos.Assim,de modo geral,o qu e provavelmente determinou a diferença entre as interpretações,foi a qualificação dos intérpretes.Conclui-se que os intérpretes que estão permanentemente aprofundando conhecimentos dentro de sua profissão,foram mais fiéis,pois não expuseram tanto suas cosmovisões durante o ato interpretativo.Revelaram menos preconceitos com relação à capacidadede os surdos compreenderemas informações passadas.O contato cotidiano dos intérpretes com a língua/cultura de chegada foi outro fator importante para a qualidadedo ato interpretativo,uma vez que,acredita-se isso amplia o vocabulário em LS e aguça a memóriado intérpreteparaos termosjá apreendidos.Este trabalho leva à conclusão de que a formação atual dos intérpretes necessita ser repensada.O ato de interpretar é uma tarefa muito mais complexado quese presume e exige dosenvolvidos não somente a prática de interpretação,mas profundo conhecimento teórico sobre a área.É indispensável que programas de pós-graduação contemplem essa discussão,visando a qualificação do intérpretede Língua de Sinais.