DEBATE: Três breves ensaios sobre percepção.
Revista Espaço
DEBATE: Três breves ensaios sobre percepção.
Autor Correspondente: Antônio Gomes Penna | [email protected]
Palavras-chave: Educação de Surdos
Resumos Cadastrados
Resumo Português:
Bergson produziu,ao longo de sua carreira,muitos textos que enriqueceram a Psicologia.Destaco,neste breve convite à reflexão,aquele com que objetivou elucidar a natureza dos processos perceptivos.Como título de La Perception du Changement,resultou em duas conferências realizadas na Universidade de Oxford,em 26 e 27 de maio de 1911.Integra o livro Lapenséeet le Mouvant,editado em Paris,pela FélixAlcan,em 1934.Pois,a tese que aí se expõe é a que ressalta o caráter utilitário da percepção.Em seu processamento habitual,ela só nos oferece os aspectos úteis detectados nos objetos.Sua função básica seria a de garantir nossa adaptação ao meio que nos envolve.Estaria fundamentalmente à serviço da vida.Tese que,sem nenhuma dúvida,foi absorvida por Bachelard,em nuança própria,decorrente de sua preocupação epistemológica.É o que se comprova no curto trecho que dele transcrevo:A opinião pensa mal;não pensa:traduzas necessidades em conhecimento.Ao designar os objetos por sua utilidade,nega-se a conhecê-los.Na verdade,quase nunca chegamos a conhecê-lo sem sua condição própria.Deles,com imensa frequência,recolhemos,apenas,o que nos pode assegurar uma adaptação adequada para efeito de sobrevivência.Efetivamente,o que neles percebemos,exprime muito mais o que nós somos do que o que eles são.Está mais para a doxa do que para a episteme.“Em momentos raros,muitos espaçados— escreve Bergson—por um feliz acaso,determinados homens aparecem com seus sentidos e sua consciência menos aderentes à vida.Então,quando eles percebem um objeto,eles o vêem pelo que eles são e não pelo que eles nos possam servir.Então,percebemos por perceber,por nada,por prazer apenas.”Os homens aos quais se refere Bergson,são os artistas:“Il ) a,em effet,depuis des siêcles,des hbommes dont la fonction est justement de voiret de nous faire voire ce que nousn'apercevons pas,naturellement.Ce sont les artistes. A experiência perceptiva que então vivemos é de um outro tipo.Revela-se como percepção estética,definida por M. Dufrenne como la perception royale,no sentido de que nela o ato perceptivo se mostra em toda a sua pureza,sem as comuns contaminações decor-rentes da busca do que nos possa trazer vantagens.A tese de Bergson,que chegou a chorar pela sua novidade,não era absolutamente destituída de raízes.Podemos,como lhos dever,detectá-la em Aristóteles,quando descreve as funções peculiares a cada um de nossos sentidos.E, se foi bem absorvida por Bachelard,como deixamos consignado,está,por igual,bem presente no belo texto de Karl Popperem que expõe sua epistemologia evolucionista e ressalta o inatismo genético que nos permite dispor de seguras informações sobreo mundo no qual somos lançados quando nascemos.Dele já sabemos o essencial no que concerne àqueles aspectos que nos garantirão a sobrevivência.Para tanto,dispomos de nossos órgãos dos sentidos produzidos sob medida para que aprendamos exatamente o útil,ressaltado por Bergson.Bergson ainda nos mostra um terceiro tipode experiência que nos leva mais longe.Insere-se no gênero da percepção,mas delas e distancia por descartara mobili-zação dos sentidos.Realiza-se por contato imediato,em termos de intuição pura.E é essa pura intuição que se mostra presente nos místicos.Num toque platônico,liberado do obstáculo epistemológico supremo que é o corpo,alcança-do através do recurso da ascese,eles se sentem diante do Ser Absoluto.O quadro assim apresentado,recorda a visão das essências,no mundo das idéias.Nele não há espaço para as ativi-dades do pensamento.Estas,efetivamente,são apenas mundanas.Afinal,como diz Bergson,o que existe,mostra-se.Subscrevendo Platão,sem dúvida,quando nos descortina o mundo celeste.Pois,então,temos a visão dos místicos.Visão que lhes permite experimentar a presença do Absoluto.Descartando por desnecessárias as intermediações que nos são oferecidas.Excluindo,por destituídas de sentido,por exemplo,as provas quea razão nos aponta como garantia dessa presença.Só que a experiência— essa de fato royale,no sentido registrado por Dufrenne— é absolutamente inefávele incomunicávele, como proclama Popper,infalsificável.Afinal,a palavra só nos vale para as coisas mundanas.E o que os místicos não chegam a dizer,embora nos mostrem pela alegria de que são tomados,de pouco vale para os que,como Popper ou acatando-o por inteiro,buscam a prova de fiabilidade.Que nunca nos é dada,para desespero dos que a buscam. No estudo dos processos perceptivos,prevaleceram sempre as pesquisas centrada sem seus aspectos visuais.No gestaltismo,por exemplo,elas foram totalmente dominantes.Muitas críticas sobre ele incidiram diante da exclusão das demais formas assumidas pela atividade perceptiva,como a auditiva,que,não obstante,foi sem precitada como ponto de partida do movimento que ressaltou a apreensão privilegiada de estrutura se não de elementos iso-lados.Que não nos esqueçamos dos clássicos estudos realizados no final do séculoXIX,por von Ebrenfels,centrados nas estruturas melódicas e com destaque concedido aos processos de transponibilidade que em nada afetavam sua identidade.A explicação mais frequente sempre apontou para a maior facilidade técnica de se operar no domínio da visão,fato que,todavia,de modo algum poderia ser considerado,diante dos célebres experimentos realizados na segunda metade do século passado por Webere Fechner,no domínio da psicofísica,de resto,centrados na discriminação táctil.É sabido que,na tradição judaica,uma das fontes principais da cultura ocidental no que se refere à dimenso religiosa,foi a audição e não a visão,o tipo de atividade perceptiva mais acionado.O exemplo de Abraão é o mais significativo.Deus não se mostrou a ele. Na verdade,fez-se apenas ouvir para dele exigir,como comprovante de sua fé, o sacrifício de Isaac,seu filho amado.Tampouco também Moisés o viu.Dele simplesmente recebe suas tábuas da lei. Possivelmente a exclusão da apreensão visual da imagem de Deus,impunha-se como forma de se evitar a idolatria que,de resto,sempre se constituiu na preocupação central dos grandes profetas.Curiosamente,essa relevância concedida à audição na tradição judaica terá influencia do Freudem sua técnica de análise.Postando-se por trás de seu analisado,ele não podia ser visto,mas,obviamente,podia ouvir seus relatos.Por sua vez,este o ouvia,sem,todavia,visualizá-lo,quando propunha suas interpretações.Em ambos dominava a escuta.Também em FernandoPessoa(AlbertoCaeiro)reflete-se essa mesma tradição quando,em suas Ficções do Interlúdio,escreve:“Pensar Deus é desobedecer Deus,Porque Deus quis que não o conhecêssemos,Por isso senão nos mostrou...”Na tradição grega,prevaleceu a percepção visual.E foi ela que marcou forte presença na história da Psicologia da percepção,detectando-se,por outro lado,a indiscutível influência do pensamento platônico.É bastante sabido que em toda a pesquisa contemporânea sobre o processo perceptivo,sempre se considerou a distinção entre a sensação—definida como a consciência de uma excitação— e a percepção propriamente dita—conceituada como a consciência da existência de um estímulo.O ato perceptivo foi,por outro lado,sempre considerado como tributário da memória.De fato,sempre o se perceber foi explicado como expressivo de uma tode categorização determinado pela influênciada experiência passada.Penso que esse vínculo que sempre se propôs entre a percepção e a memória revela-se como o melhor testemunho da presença,na psicologia contemporânea,do pensa-mento de Platão.Curiosamente,a única teoria que se pôs contra a relevância concedida à memória foi a de Gestalt. Não que excluísse de todo certa influência das experiências passadas.A relevância por ela concedida aos sets ou atitudes perceptuais constitui bom comprovante dessa postura.Na realidade o que jamais se aceitou foi a tese de um vínculo essencial entre o ato de apreensão perceptiva e a memória.Kohler sempre argumentou,para efeito de sustentar a independência do ato perceptivo,como exemplo do primeiro ato de apreensão perceptual.Não existindo experiências prévias que o fundamentasse,ele pretendia provar a independência da per-cepção relativa mente à memória.Sem dúvida,o argumento revela-se bom.Mas não de todo bom,de modo a excluir a presença de Platão.Afinal,também no mundo das idéias a alma do homem teria contemplado a essência,por exemplo,do belo e do bem,sem jamais poder beneficiar-se de qualquer experiência anterior,pois que esta nunca poderia acontecer.Vale que se ressalte,em especial,a contemplação do bem,na medida em que ele se identifica como supremo ser cuja apreensão sempre foi negada pela tradição judaica. Foi Bergson quem,em famosa passagem de um de seus clássicos textos,ressaltou que o que existe mostra-se.Aparentemente,então,bastaria olhar para ver.Seria simples se fosse assim.Mas não o é. E o próprio Bergson sabia disso.Se bastasse olhar para ver, na medida mesma em que o que existe mostra-se,nem teria sentido falar-se,por exemplo,de uma percepção mística.Na verdade,esta a ponta para uma espécie de percepção que nada tem a ver coma percepção comum.Esta distingue-se essen-cialmente pela apreensão do útil.Tampouco teria sentido o falar-se de uma percepção estética.Afinal,se tudoo que existe mostra-se, toda percepção seria,por igual,estética.E não o é. Como ainda bem convencido disso estava o próprio Bergson quando ressaltou que ela resulta de um momento fugaz de uma desatenção da vida.Porque,insista-se,segundo Bergson,em função da própria vida,só percebemos o útil.De resto,a sabedoria popular já descobrir a que parase perceber algo não tão comum no cotidiano,é sempre necessário que se disponha de olhos de ver.Não basta,pois,ter apenas olhos.Importa que saibamos tirar par-tido deles.Na verdade,no dia-a-ia,o quepercebem o sé sempre o útil,que,por isso mesmo,logo se banaliza.Claro que mesmo esse tipo de apreensão perceptual,sebem explorado por olhos curiosos,conduz-nos longe e bem pode permitir que se venha a detecta ro relevante e não o banal.De fato,o que se mostra sempre encobre o que por isso,escapa à nossa apreensão.Com olhos dever,contudo,coma curiosidade e a astúcia que lhe são peculiares,conseguimos descartar o banal e atingir o relevante.O se falar em olhos de vera ponta efetivamente para uma forma de apreensão perceptual que nunca se satisfaz como que lhe é oferecido.De fato nunca se sente confortável.Supõe sempre que algo lhe está sendo negado e não se rende nunca.Possivelmente,comporta-se como que tocada pela dúvida que Descartes inaugurou,marcando-se,ainda,pela suspeita de que algo de importante nos está sendo subtraí-do.Veja-se o exemplo de O pequeno príncipe de Saint-Exupery.O desenho que se propõe aos adultos— que geralmente não dispõem de olhos de ver — é o de uma serpente que engolir a um elefante.Os adultos,entretanto,só detectam um chapéu.O que,no entanto,estava sendo mostrado era o desenho de uma serpente que engolir a um elefante.A incapacidade para um aprofundamento do que estava sendo exibido precisamente traduzia apenas uma disponibilidade para a pura apreensão do que superficialmente se mostrava.Nenhuma curiosidade para um investimento mais aprofundado no que se oferecia os estudos produzidos pelos gestalistas acerca da natureza altamente dinâmica da percepção,um tema logo alcançou relevo.Refiro-me à ambiguidade das estruturas com que nos defrontamos no dia-a-dia.Pois,muitas dessas estruturas nos enganam.Mostram-se ardilosamente sob a aparente forma única e, na verda-de,escamoteiam várias que poderiam ser percebidas.Não,contudo para aqueles dotados de olhos de ver.Para os que deles são dotados muitas outras formas poderão ser detectada se certamente as de maior significado.A dúvida prudente,a dúvida que por método nos foi legada por Descartes,importaque nós a tenhamos como aliada.Ela impedirá que nos sintamos confortáveis como que de imediato percebemos.Todosos belos estudos de Gottschaldt demonstram isso.Algo de fácil acesso e de apreensão imediata pode subtrair à nossa percepção o que se encobre sob o efeito de uma ca-muflagem.Sempre insistina necessidade permanente de que se desconfie das formas que se impõem a todos sem qualquer investimento de esforço.Como se fossem as únicas.Há que se desconfiede que,por trás,algum tesouro poderá se encontrado.Em toda a históriada Ciência acumulam-se os achados que por séculos escaparam aos que não dispunham de olhosde ver. O bom exemplo é o da famosa queda da maçã.Durante tantos se tantos séculos o espetáculo foi testemunha do porto dos como um espetáculo banal.Newton não se conformou com a banalidade do fato e, com olhos de ver logo revolucionou o conhecimento humano.Fato equivalente ocorreu com a visão dos que testemunharam o movimento do Sol em torno da Terra.Mais uma vez,graças à disponibilidade de olhos de ver, descarta-se com Copérnico e Galileu a concepção geocêntrica em favor do heliocentrismo.De toda essa história logo o que se aprende é que o ato de perceber não se revela como um ato absolutamente fácil.Antes,mostra-se como um processo do qual sempre se deva esperar informações novas e quase intermináveis.Nem foi sem importância que Nietzsche registrou,em famoso aforismo,a necessidadede se aprendera ver,de resto,tão necessária quanto o aprender a pensar,por exemplo.